
Instituído pela Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), o Benefício de Prestação Continuada (BPC) representa um marco significativo na proteção social brasileira, garantindo uma assistência mínima a milhares de pessoas em situação de vulnerabilidade social. O mapa de calor a seguir, obtido no Portal da Transparência (https://portaldatransparencia.gov.br/beneficios?ano=2024) revela em números a quantidade de beneficiários por estado, no ano de 2024:

Embora o BPC beneficie uma parcela substancial da população brasileira, muitas pessoas em situação de vulnerabilidade ainda não conseguem acessar o benefício. O impedimento advém de múltiplos fatores, como por exemplo o excesso de burocracia imputado aos pretendentes do BPC, ou, ainda, a avaliação equivocada da deficiência no âmbito administrativo.
Outro fator que contribui para a negativa do benefício diz respeito aos critérios de interpretação restritivos comumente aplicados pelos tribunais. Esses entendimentos, ao exigir critérios mais rigorosos do que os estabelecidos na legislação, não raro, ignoram o contexto social e as barreiras enfrentadas pelos beneficiários, propiciando um cenário de desproteção social avesso à intenção do legislador.
Na coluna de hoje falaremos sobre um exemplo desses.
Como ponto de partida, utilizaremos um julgamento proferido pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região, conforme ementa a seguir:
PREVIDENCIÁRIO. ASSISTENCIAL. PROCESSUAL CIVIL. BENEFÍCIO DE PRESTAÇÃO CONTINUADA. ART. 203, V, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. LOAS. DEFICIENTE. DEFICIÊNCIA E MISERABILIDADE CONFIGURADAS. PREENCHIMENTO DOS REQUISITOS LEGAIS. DEVIDA A CONCESSÃO DO AMPARO ASSISTENCIAL. TERMO INICIAL. CITAÇÃO. APELAÇÃO DO INSS DESPROVIDA.
[...]
- No caso vertente, da análise da perícia médica psiquiátrica observa-se que a autora, de 44 anos de idade, analfabeta, é portadora de desenvolvimento mental retardado em grau leve (Oligofrenia Leve), possuindo limitação apenas para atividades que demandam habilidades acadêmicas, o que caracteriza incapacidade parcial e permanente.
[..]
(TRF 3ª Região, 10ª Turma, ApCiv - APELAÇÃO CÍVEL - 5784128-
11.2019.4.03.9999, Rel. Desembargador Federal LEILA PAIVA MORRISON, julgado em 30/08/2023, Intimação via sistema DATA: 31/08/2023)
No vertente caso, tratava-se de uma mulher com deficiência intelectual cujo benefício foi negado, essencialmente, porque o exame pericial constatou a incapacidade parcial e permanente. Para o Tribunal, a existência de capacidade laboral residual constituiria um fator impeditivo para a concessão do BPC.
Contudo, averiguando minuciosamente as normas de regência, não se extrai qualquer exigência de que a pessoa apresente incapacidade total e permanente para fazer jus ao BPC. Na verdade, a deficiência exigida para a outorga do benefício sequer equivale à incapacidade, conforme Enunciado 147, aprovado no Fórum Regional dos Juizados Especiais Federais da 2ª Região:
Enunciado nº 147
A deficiência para fins de concessão de BPC assistencial é distinta da incapacidade laborativa para fins previdenciários, sendo necessária quesitação específica para avaliação pericial judicial, levando em conta os critérios do artigo 20, parágrafo 2. Lei n. 8.742.
Não havendo equivalência entre os institutos, afigura-se inadequado exigir a incapacidade total e permanente do indivíduo para a concessão do BPC. O que a Lei artigo 20, § 2º, exige é a demonstração do impedimento de longo prazo, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas. Tais impedimentos não ficam circunscritos à capacidade de trabalho do indivíduo, podendo alcançar outros aspectos da vida da pessoa, como educação, lazer, comunicação, vida doméstica etc.
Com justa razão que a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) se firmou no sentido de que
a concessão do BPC/LOAS não depende da demonstração de incapacidade total e permanente para o trabalho, confira-se:
PREVIDENCIÁRIO. BENEFÍCIO ASSISTENCIAL À PESSOA DEFICIENTE. LOAS. DISTINÇÃO QUANTO À NATUREZA DA INCAPACIDADE. IMPOSSIBILIDADE. NÃO É POSSÍVEL AO INTÉRPRETE ACRESCER REQUISITOS NÃO PREVISTOS EM LEI PARA A CONCESSÃO DO BENEFÍCIO. ACÓRDÃO QUE MERECE REPAROS. RECURSO ESPECIAL PROVIDO.
[...]
- In casu, observa-se que o benefício foi negado sob o fundamento de que o beneficiário deveria apresentar incapacidade absoluta, de sorte que não permita ao requerente do benefício o desempenho de qualquer atividade da vida diária e o exercício de atividade laborativa.
- Ocorre que tal exigência não está prevista em lei, pois esta não precisa o grau de incapacidade, não cabendo ao intérprete a imposição de requisitos mais rígidos do que aqueles previstos na legislação para a concessão do benefício (REsp 1.404.019/SP, Rel. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Primeira Turma, DJe 03/08/2017).
- Dessume-se que o acórdão recorrido não está em sintonia com o atual entendimento deste Tribunal Superior, razão pela qual merece prosperar a irresignação.
- Recurso Especial provido.
(REsp n. 1.770.876/SP, relator Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 6/12/2018, DJe de 19/12/2018.)
Esse posicionamento se baseia na máxima hermenêutica de que “onde a lei não restringe, o intérprete não deve restringir”. Considera, ainda, o princípio da máxima efetividade das normas constitucionais, conferindo a maior eficácia possível ao disposto nos artigos 6º e 203 da Constituição Federal, de modo a reduzir a vulnerabilidade socioeconômica de famílias em condições de pobreza.
Portanto, exigir que o indivíduo apresente incapacidade absoluta para concessão do BPC/LOAS representa um critério restritivo sem respaldo na legislação vigente. Esse entendimento deve ser contestado pelos advogados, visto que tal interpretação dificulta o acesso dos indivíduos mais vulneráveis ao benefício essencial para uma vida digna, resultando em desproteção social.